O Supremo Tribunal Federal (STF) julgou dois recursos extraordinários muitocomentados (temas 881 e 885), em que tratou da eficácia de decisões transitadas em julgado em matéria tributária, estabelecendo que “as decisões proferidas emação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado” nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. Este artigo visa discutir se as decisões de repercussão geral podem ter esse efeito e, caso tenham, se a decisão do STF deve ser modulada nesse ponto.
A partir do acórdão da decisão do tema 885, notamos que o STF adotou oentendimento de que todas essas decisões do plenário do órgão possuem efeitoserga omnes, ou seja, que vale para todos.
Regra geral, a nossa Constituição deu ao Legislativo a tarefa de criar normas (as leis)que valem para todo mundo. Mas também previu exceções em que o STF podeproferir decisões que têm o mesmo efeito erga omnes das leis. São as decisõesproferidas em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) e Ação Declaratória deConstitucionalidade (ADC), ou seja, de “controle direto” de constitucionalidade. Alegislação também atribui estes efeitos à Ação Contra Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF). A Constituição é muito clara: essas decisões “produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do PoderJudiciário e à administração pública direta e indireta nas esferas federal, estadual emunicipal” (artigo 102, parágrafo 2º, da Constituição).
Por meio da Emenda nº 45/2004, foi incluído o artigo 103-A na Constituição, quetambém deu ao STF a prerrogativa de emitir súmulas com efeito vinculante.Contudo, diferente da “eficácia contra todos”, aqui a Constituição limitou a força e previu que tais súmulas teriam apenas “efeito vinculante em relação aos demaisórgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferasfederal, estadual e municipal”. Ou seja, a súmula vinculante não obriga o cidadão comum, como acontece com as leis.
A receita de independência e harmonia dos poderes que a Constituição encontroufoi dar ao Legislativo, por meios dos representantes eleitos pelo povo, a prerrogativade criar normas que obrigam todos, bem como criou exceções, dando às decisõesdo STF em ADI, ADC e ADPF esse efeito parecido ao das leis. Mas isso é exceção edeve ser interpretada restritivamente.
Seria necessária uma emenda constitucional para dar o mesmo efeito das leis àsdecisões de controle difuso no regime de repercussão geral no STF. Veja que a Constituição dá uma saída para que decisões em controle difuso valham para todos,mas ela depende do Congresso. Na sua redação atual, o artigo 52, X, da Constituição estabelece que caberá ao Senado “suspender a execução, no todo ou em parte, delei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”.Em outras palavras, nesses casos de controle difuso, o Judiciário profere a decisão eo Legislativo dá a “eficácia contra todos”. Cada poder com a sua prerrogativa.
Apesar de o tema ser técnico, a conclusão é simples. Esse foi o mecanismo que a Constituição desenhou para manter a independência e a harmonia entre ospoderes. O STF já decidiu esse tema na Reclamação (HC) 4335, em que prevaleceu oentendimento de que decisões do plenário do STF em controle difuso não têmefeitos erga omnes. O ministro Joaquim Barbosa foi enfático: “Trata-se, aqui, naverdade, de uma proposta de supressão de uma competência do Legislativo,competência essa que vem sendo exercida. É um excesso.” O saudoso ministro Teori Zavascki proferiu um voto brilhante, em que cunhou expressão até hoje usada pelosprocessualistas: força expansiva. Isso significa que as decisões em controle difuso
são obrigatórias para o Judiciário do país inteiro, mas não têm o mesmo efeito dasleis. Rediscutir o tema só traria insegurança jurídica.
O sistema jurídico hoje funciona baseado nessas premissas. Regra geral, nem ocontribuinte nem o Poder Executivo estão imediatamente obrigados por decisões proferidas pelo STF em sede de repercussão geral. Por exemplo: o artigo 19 da Lei nº10.522 esclarece que o Poder Executivo Federal poderá autorizar procuradores eauditores a parar de questionar temas em que a União tenha sido derrotada no STFpor decisões de repercussão geral. O artigo 74 da Lei nº 9.430, parágrafo 12º, alínea“f”, autoriza o contribuinte a pedir de volta, por compensação administrativa, tributoreconhecido inconstitucional por decisões do STF com efeitos erga omnes. Mas essedispositivo é taxativo e não lista as decisões em repercussão geral (exatamenteporque ela não tem efeitos erga omnes).
Portanto, quando do julgamento dos embargos de declaração, o STF pode limitar ojulgamento dos temas 881 e 885 para dizer que as decisões em repercussão geralnão têm os efeitos erga omnes necessários para fazer cessar os efeitos de decisõestransitadas em julgado de alguns contribuintes. Até porque, nos casos julgados nostemas 881 e 885, não existe decisão de repercussão geral que afete a conclusão dojulgamento. Na pior das hipóteses, se for o caso de alterar a jurisprudência do STFpara dizer que as decisões em repercussão geral possuem efeitos erga omnes, quepelo menos o STF module os efeitos da sua decisão, para preservar os direitos dequem confiou no entendimento anterior do STF na Reclamação (HC) 4335, cujaconclusão era oposta.