Pessoas jurídicas e crimes econômicos

Analisar a responsabilidade penal da pessoa jurídica no cenário brasileiro leva a uma dupla perplexidade. No plano da incidência material de crimes aos quais possa responder, é no mínimo exótico que um ordenamento jurídico vença a árdua luta política para inserir no seio da sua Constituição essa forma de responsabilidade penal, assim como escape com êxito do campo minado das intensas e infindáveis críticas teóricas de penalistas (majoritariamente) e processualistas penais (em franca minoria em relação àqueles) para organizar o sistema punitivo desses “entes” e restrinja o objeto dessa criminalização a ilícitos ambientais.

Acentua essa estranheza que estejamos comprometidos, por força constitucional, no plano mundial e regional com praticamente todos os compromissos internacionais de combate à corrupção em todas as suas manifestações, não se limitando, portanto, à esfera da ilicitude do meio ambiente.

Serve pouco à diminuição da perplexidade em relação à opção legislativa brasileira que “direito ambiental” seja um conceito teórico e legislativamente amplo, assim como exista a possibilidade de que tais ilícitos sejam cometidos, em abstrato, também por organizações criminosas, autorizando o emprego de um sistema repressivo emergencial em seu enfrentamento.

Mesmo porque, ainda que se queira falar em “ecocídio” ou “terrorismo ambiental”, assim como em crimes imprescritíveis à luz do texto constitucional como o racismo e seu derivado ambiental, o “racismo ambiental”, seriam tais figuras, se extraíveis do ordenamento vigente, de inédita constatação orgânica na prática. Carece o Direito Vivo desse ordenamento de casos de responsabilidade de empresas por fomentar o racismo ambiental e nem de longe se pode constatar a existência do crime de ecocídio nesse sistema punitivo.

Quando o direito brasileiro procurou vincular a responsabilidade penal da pessoa jurídica à corrupção, o fez por uma legislação que não se assumiu como penal e que raras vezes foi interpretada nesse sentido. E, quando se tentou fazê-lo, por maioria considerável manteve-se a interpretação dominante de que se trata de uma norma substancialmente civil.

Mas, a realidade se impõe muitas vezes de forma enérgica à letargia legislativa e a conflitos teóricos. Tem-se na realidade social em que nosso raro ordenamento que empresas são afetadas em suas estruturas societárias e na sua produção de bens e serviços por imposições patrimoniais constritivas no âmbito processual penal que, inicialmente voltadas a pessoas físicas que as integram ou possuem, recaem sobre o patrimônio empresarial.

Mais ainda, evidencia-se em progressão geométrica a utilização de empresas ou instituições financeiras criadas e mantidas exclusivamente como parte de engrenagens criminosas com finalidades as mais diversas, contexto incrementado pelo avanço tecnológico que cria condições materiais para que essas empresas atuem no âmbito de uma criminalidade organizada.

Tem-se, nesse plano, o do Direito material Penal, que já passou da hora de olhar com maturidade para o artigo 173, parágrafo 5º da Constituição e entender que existe plena autorização constitucional para responsabilizar pessoas jurídicas por crimes contra a ordem econômica e financeira, bem como contra a economia popular.

Mas a perplexidade não é, apenas, de ordem penal material. A ela se soma a impressionante lacuna legislativa sobre o modo de ser do processo em que a pessoa jurídica figura como acusada, diversamente do que se passa no cenário comparado onde, como regra, há especificidades essenciais nesse contexto que aqui são negligenciadas.

Ao final, uma necessária observação. Ampliar a responsabilidade penal da pessoa jurídica no marco da autorização constitucional não pode ser visto pela lente fácil da expansão punitiva. Ao contrário, trata-se de dar racionalidade com base no compromisso político assumido quando da restauração da democracia e enfrentar, de forma adequada, a indesejada utilização de meios empresariais para cometimento de crimes que galgam em sofisticação, notadamente os financeiros.


Fonte: Valor Econômico

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