A Justiça de São Paulo tem suspendido cobranças de ITBI feitas por prefeituras, incluindo a da capital, em casos em que o contribuinte não teria sido chamado a participar de processo administrativo de avaliação do valor do imóvel. A definição é relevante porque determina a base de cálculo do imposto.
A disputa surgiu após o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ter definido, em fevereiro do ano passado, que o ITBI deve recair sobre o valor de mercado do imóvel – e não sobre o valor venal do IPTU ou o de referência, que é presumido pelo Fisco com base em estimativas de mercado (REsp 1937821).
“Normalmente, são maiores que o valor da transação”, afirma o advogado Eduardo Natal, sócio do escritório Natal & Manssur, destacando que o ITBI, que varia entre 2% e 3% sobre o valor de venda, tem peso significativo na receita das prefeituras.
Na cidade de São Paulo, por exemplo, foram arrecadados R$ 3,2 bilhões no ano de 2022 – equivalente a 6,7% dos R$ 47,7 bilhões com impostos, taxas e contribuições. As autuações de ITBI, no mesmo ano, somaram R$ 167,1 milhões. O montante inclui o valor do tributo mais multa.
Apesar de ter sido proferida em recurso repetitivo, a decisão do STJ não estancou as disputas sobre a base de cálculo do imposto – exigido pelos municípios em operações de compra e venda de imóveis.
O que tem acontecido, relatam advogados, é que, na esteira da decisão do STJ, os contribuintes têm recolhido o imposto com base no valor de mercado do imóvel. Prefeituras, como a de São Paulo, no entanto, tem discordado do preço declarado e exigido a diferença do imposto.
“Contribuinte deve ser intimado e ter a oportunidade para apresentar defesa” — Isabella Tralli
Fazem isso, dizem, com base em procedimento de arbitramento do valor do imóvel. O problema, acrescentam tributaristas, é que o contribuinte não tem sido chamado a participar desse processo administrativo. Isso tem levado a Justiça a suspender ou cancelar autuações fiscais.
“A Prefeitura de São Paulo, por exemplo, pode e deve fiscalizar. O problema é que está autuando os contribuintes de maneira arbitrária e contrária à lei porque não está concedendo o direito ao contraditório”, afirma o advogado Vinicius de Barros, do escritório Teixeira Fortes, que atuou para um cliente nessa situação.
De acordo com Eduardo Natal, isso também tem ocorrido em outras capitais. “Não é possível desconsiderar a boa-fé na operação sem que se dê ao contribuinte o direito prévio de justificar o preço praticado”, diz.
Em um caso analisado em agosto pela Justiça paulista, o contribuinte declarou a venda do imóvel em R$ 838 mil e recolheu cerca de R$ 26,1 mil de imposto. A prefeitura o autuou. Arbitrou que o valor correto do imóvel seria de R$ 1,2 milhão e que deveriam ter sido recolhidos R$ 36 mil de imposto. Cobrou a diferença e com multa. O valor total da cobrança chega a R$ 14,7 mil.
“O que o cliente discorda. Mas a avaliação é feita administrativamente sem comunicar o contribuinte para que apresente elementos ou impugne o laudo”, diz Barros.
Ao analisar a situação, a juíza Fernanda Pereira de Almeida Martins, da 9ª Vara de Fazenda Pública da capital paulista, suspendeu liminarmente a cobrança da dívida – que já havia sido protestada em cartório. Cabe recurso (processo nº 1051039-54.2023.8.26.0053).
“A autora alega que não lhe foi dada a oportunidade de exercício do contraditório e da ampla defesa em processo administrativo que resultou na apuração da diferença a ser paga a título de ITBI, apesar de haver decisão judicial onde se determinou o recolhimento com base no valor da transação. Desta forma, como não se pode exigir da autora a prova de fato negativo, bem como se deve presumir a boa-fé dos litigantes,
entendo ter sido demonstrada a probabilidade do direito”, afirma.
O entendimento também tem sido favorável ao contribuinte em casos que já chegaram ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). Em decisão recente, a 15ª Câmara de Direito Público, por unanimidade, anulou um auto de infração de R$ 40 mil contra uma empresa imobiliária e condenou o município ao pagamento de danos morais no valor de R$ 8 mil pelo protesto indevido da dívida em cartório.
Segundo o relator, desembargador Amaro Thomé, o STJ, no recurso repetitivo, estabeleceu que o valor da transação declarado pelo contribuinte deve ser presumido como condizente com o valor de mercado. A declaração, acrescenta, só pode ser afastada por meio de processo administrativo próprio.
“Muito embora o município alegue a existência de procedimento prévio, o fato é que não há qualquer elemento nos autos que indique ter havido a adoção de qualquer expediente tendente a apurar o valor correto, tampouco que tenha sido franqueado ao contribuinte o direito de se manifestar ou prestar os esclarecimentos necessários em sede administrativa, daí porque a cobrança se mostra indevida”, diz, no voto (processo
nº 1066220-32.2022.8.26.0053).
A advogada Isabella Tralli, do VBD Advogados, explica que é excepcional o procedimento de arbitramento do valor usado como base de cálculo do imposto. O Fisco está autorizado a fazê-lo, pelo artigo 148 do Código Tributário Nacional (CTN), quando existem indícios de omissão ou máfé na declaração do contribuinte.
“Mas deve ser feito por processo regular, o que pressupõe que o contribuinte seja intimado e tenha a oportunidade para apresentar defesa, ainda que seja por petição simples dizendo que discorda do cálculo da prefeitura”, afirma.
Em outro caso analisado recentemente, o TJSP cancelou uma cobrança do ITBI porque o contribuinte – uma empresa de empreendimentos imobiliários – só tomou conhecimento de que houve um procedimento de arbitramento pela Prefeitura de São Paulo depois da lavratura do auto de infração.
“O processo administrativo transcorreu sem que houvesse observância aos princípios do contraditório e da ampla defesa, em flagrante ofensa ao mandamento constitucional”, diz o relator, desembargador Eurípedes Faim, ao reverter uma sentença que havia sido favorável ao Fisco (processo nº 1032442-71.2022.8.26.0053).
Para o advogado Eduardo Natal, as decisões da Justiça de São Paulo refletem a correta definição dada ao tema pelo STJ. “Na medida em que afasta o unilateral e prévio arbitramento fiscal em detrimento dos efetivos valores praticados na transmissão imobiliária.”
O Valor questionou a Prefeitura de São Paulo sobre o motivo pelo qual os contribuintes não têm sido chamados a participar do processo de arbitramento. A Secretaria Municipal da Fazenda respondeu, em nota, que todo o contribuinte que recebe um auto de infração de ITBI pode, dentro de 30 dias da data da notificação, entrar com impugnação administrativa.
Nesse momento, “poderá contestar quaisquer aspectos da exigência fiscal, inclusive a utilização do valor arbitrado como base de cálculo, bem como apresentar avaliação contraditória ou quaisquer outras provas que possam dar sustentação às suas alegações”.