A incapacidade de o governo aceitar as leis em vigor, soberanamente editadas na legislatura anterior, tem irritado os parlamentares e é uma das principais causas da sua crise de relacionamento com o Congresso Nacional – crise que não vai terminar enquanto não cessar a arrogância que mascara um revanchismo infantil de certos setores do Poder Executivo em relação à agenda soberana do parlamento.
O primeiro exemplo desse revanchismo surge em janeiro, com a edição sorrateirada Medida Provisória nº 1.160, de 12 de janeiro de 2023, que reintroduziu mecanismo de desempate de julgamentos do Carf – o voto de qualidade – que havia sido legitimamente revogado pelo parlamento.
Com efeito, o artigo 19-E da Lei nº 10.522, de 2002, definiu que, em caso de empatenos julgamentos do Carf, o presidente fazendário das turmas julgadoras não mais teria um duplo voto (o voto de qualidade), e os contribuintes teriam sua pretensão decidida de forma favorável, cancelando-se a exigência fiscal, em prestígio aoprincípio in dubio pro contribuinte.
Essa medida legislativa foi adotada pelo Congresso, aliás até tardiamente, diante da extrema insatisfação dos contribuintes com a forma que o voto de qualidade vinha sendo usado e abusado nos julgamentos do Carf para confirmar autuações fiscais formalizadas segundo a cartilha de teses arrecadatórias da Receita Federal, ao arrepio do texto legal, de orientações anteriores do próprio Carf e da jurisprudênciados tribunais.
Essa prática da administração foi bem sintetizada pelo TRF-4 no acórdão da apelação cível nº 5009900-93.3017.4.04.7107, no emblemático caso Transpinho,decidido pelo voto de qualidade: “Diante de operações lícitas que venham sendoutilizadas pelos contribuintes como substitutas não tributadas, ou ainda menos onerosas, ou bem o legislador edita norma casuística proibindo o emprego desse expediente específico (ou ainda impedindo a economia pretendida), ou bem o Estado se conforma com o montante pago, não sendo aceitável que o Fisco, apretexto de reparar o que parece uma injustiça fiscal aos seus olhos, desconsideretal ’planejamento’, porque é do Poder Legislativo, e não da administração pública (por mais elevados que sejam os seus propósitos), a competência para regular einterferir no exercício das liberdades econômicas e no patrimônio dos indivíduos”.