O sistema jurídico brasileiro demonstra há tempos dificuldades com questões temporais, o que pode gerar relevantes impactos financeiros. Há dúvidas quanto ao início e término da fluência de prazos, assim como sobre a forma de sua contabilização, em prejuízo à segurança jurídica.
As principais reformas legislativas recentes, como a do Código Civil de 2002 (CC) e do Código de Processo Civil de 2015 (CPC), geraram dúvidas quanto à entrada em vigor da legislação e sua aplicação às relações preexistentes. Há rediscussões periódicas, ainda, se prazos para pagamento devem ser computados em dias úteis ou corridos, ou se as partes em uma relação jurídica podem modificar os prazos legais.
A fim de permitir a pacificação dessas discussões, o CPC prevê a possibilidade de o Superior Tribunal de Justiça (STJ) modular os efeitos de suas decisões, para determinar a partir de quando determinado entendimento deve vigorar. Entretanto, além de raramente utilizar essa prerrogativa, quando modula o efeito de suas decisões, o STJ tem utilizado critérios variados, prejudicando a previsibilidade e segurança jurídica de decisões que deveriam uniformizar interpretações.
Nesse contexto, recentemente, as incertezas quanto ao direito temporal atingiram em cheio, e de maneira inusitada, as regras de incidência de encargos moratórios sobre dívidas civis — tema de suma importância econômica, eis que capaz de duplicar débitos judiciais em poucos anos.
Isso porque, desde a entrada em vigor do CC, há discussão quanto a qual seria o indexador aplicável aos juros legais por não pagamento de dívidas civis, se 1% ao mês ou a taxa Selic, eis que o artigo 406 do CC fazia remissão ao índice aplicável aos débitos junto à Fazenda Nacional — e há leis anteriores ao CC determinando a incidência de um ou outro índice, a depender da natureza do débito, ocasionando a dúvida.
O STJ, então, decidiu em 2008 que o índice aplicável seria a Selic (EREsp 727.842), o que vinha sendo ignorado por alguns tribunais sob o argumento de que não estariam vinculados ao entendimento e de que (mais reais do que o rei) a Selic seria inadequada a esse fim. A questão foi, então, decidida novamente pelo STJ em 2024 (REsp 1.795.982), dessa vez com indubitáveis efeitos vinculantes para as instâncias inferiores.
O tema estaria, então, pacificado: o índice aplicável é a Selic e todos os tribunais devem adotar esse entendimento. Antes que o STJ concluísse esse segundo julgamento, sobreveio aquilo que deveria servir de reforço ao entendimento adotado, a Lei nº 14.905/24, que modificou o CC para prever expressamente que o indexador aplicável ao não pagamento de dívidas civis é exatamente a Selic.
Vale dizer, não deveria haver mais dúvida alguma: o indexador já era a Selic desde o advento do CC e continua a ser a Selic (agora expressamente) com a Lei 14.905/24, certo? Lamentavelmente, não.
Por incrível que possa parecer, há um número considerável de julgadores se valendo da alteração legislativa para afirmar que, se com o advento da Lei nº 14.905/24 o CC passou a se referir expressamente à Selic, então, antes disso, o CC se referia à preferência do julgador em questão (usualmente, 1% ao mês).
Ou seja, a alteração legislativa que confirmou o entendimento do STJ tem servido de reforço para que julgadores arredios à sua subordinação ao entendimento do STJ (que possui previsão legal, diga-se) simplesmente ignorem o que foi decidido pela Corte Superior.
Ora, como dito, a Lei nº 14.905/24 entrou em vigor antes do STJ concluir o segundo julgamento no qual decidiu que a Selic era aplicável anteriormente a tal lei, e o STJ possuía em mãos mecanismo para fazer constar expressamente a partir de quando sua decisão é aplicável.
Entretanto, a Corte Superior preferiu encerrar o julgamento sem esse esclarecimento expresso, além de mencionar como fundamentos para aplicação da Selic, o Decreto nº 7.212/2010 e a Emenda Constitucional nº 113/2021, muito posteriores à entrada em vigor do CC, o que atrai a dúvida se a interpretação do STJ só valeria após a entrada em vigor dessas legislações.
Consequentemente, o STJ já admite ter que revisitar novamente o tema da Selic para “definir se constitui violação à coisa julgada a alteração, na fase de cumprimento de sentença, dos juros de mora e/ou da correção monetária fixados em índice diverso da Selic, por título executivo que tenha sido proferido e transitado em julgado após a vigência do Código Civil de 2002”, questão temporal que já poderia ter sido definida quando do julgamento (sobre Selic) concluído em 2024.
Aliás, o projeto de reforma do CC — que deveria ser batizado de projeto de novo código civil, já que propõe mais alterações ao CC atual do que este trouxe em relação ao Código Civil de 1916 — possui múltiplas disposições que confirmarão ou alterarão entendimento jurisprudencial consolidado das Cortes Superiores.
Nesse contexto, a despreocupação quanto à segurança jurídica no tratamento da Selic é motivo de apreensão quanto aos demais temas passíveis de reforma no CC.
Ninguém tem mais motivos para tal apreensão do que credores e devedores de dívidas civis, já que o projeto de reforma do CC prevê juros por não pagamento de 1% ao mês, de modo que, se a alteração for aprovada, haverá um tempo em que 1% ao mês e Selic coexistiram, outro momento em que a Selic reinou e um terceiro em que 1% ao mês foi soberano. Restará novamente ao STJ estipular quando foi cada qual.
Fonte: Por Daniel Guariento e Iuri Reis – sócios da área de Contencioso do Machado Meyer Advogados