A expansão do direito antitruste ao mercado de trabalho
É imprescindível que as empresas invistam no amadurecimento de seus programas de compliance e na capacitação de profissionais dedicados à sua implementação e atualização contínua
Ao longo do primeiro semestre, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) celebrou seis novos Termos de Compromisso de Cessação (TCC) com empresas investigadas por condutas anticompetitivas no mercado de trabalho, envolvendo a troca de informações concorrenciais sensíveis entre departamentos de recursos humanos (RH).
Um dos acordos foi celebrado no âmbito da investigação pioneira instaurada em 2020, que marcou o início, no Brasil, de uma nova frente de atuação do Cade, voltada à fiscalização e penalização de práticas anticompetitivas no mercado de trabalho.
O processo em questão teve como foco empresas da indústria de cuidados com a saúde que, entre 2009 e 2018, teriam trocado informações sensíveis a respeito de condições salariais, planos de carreira e benefícios de mercado oferecidos aos seus colaboradores, chegando, em alguns casos, a atuar de forma conjunta para fixar condições aplicáveis ao setor.
Em 2022, o Cade já havia celebrado outros seis acordos com empresas investigadas nesse processo, além de 35 pessoas físicas a elas relacionadas, que tiveram de pagar mais de R$ 34 milhões em condenações pecuniárias.
O caso se tornou um importante paradigma no direito concorrencial brasileiro, não apenas pelos valores envolvidos, mas especialmente por ter despertado a atenção da autoridade antitruste brasileira para a atuação em um segmento de mercado até então inexplorado no país, que, por sua vez, seguiu em expansão nos anos seguintes.
Em 2024, por exemplo, o Cade instaurou outra investigação contra um grupo de mais de 30 grandes empresas multinacionais, que entre 2004 e 2021 teriam atuado coordenadamente para limitar a livre concorrência no mercado de trabalho brasileiro. Dessa investigação, inclusive, derivaram os outros cinco TCCs celebrados pelo Cade no primeiro semestre deste ano.
Embora inovadora no Brasil, a temática do direito concorrencial nas relações de trabalho já vinha sendo debatida em jurisdições estrangeiras. Entre 2010 e 2014, por exemplo, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ) firmou acordos com grandes empresas de tecnologia e e-commerce, como eBay, Apple, Google, Intel, Adobe e Pixar, que foram investigadas por práticas semelhantes, relativas a acordos de não contratação mútua e trocas de informações salariais.
A gravidade do tema levou, em 2016, à publicação do Guia Antitruste para Profissionais de Recursos Humanos, editado pelo DOJ em parceria com a Comissão Federal de Comércio, com o objetivo de orientar os departamentos de RH quanto aos limites legais das interações com concorrentes.
Em janeiro de 2025, esse material foi atualizado e ampliado com a edição das Diretrizes Antitruste para Atividades Empresariais que Afetam Trabalhadores, refletindo a evolução da discussão sobre práticas anticompetitivas no mercado de trabalho.
No mesmo sentido, a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) publicou, em 2020, a nota técnica Competition in Labour Markets, na qual destacou os riscos concorrenciais decorrentes de práticas de conluio no âmbito das relações de trabalho e apresentou exemplos de restrições impostas por autoridades antitruste em diferentes países.
O documento reforçou a necessidade de vigilância regulatória sobre tais condutas, especialmente em mercados de alta concentração, trazendo lastro técnico e comparado à nova frente de investigações conduzida pelo Cade e contribuindo para o amadurecimento do debate no contexto brasileiro.
No Brasil, a Nota Técnica nº 36/2021, emitida no âmbito do processo que introduziu o tema nas discussões do Cade, esclarecia que a competição entre as empresas investigadas não se limitava ao mercado de produtos e serviços, mas também se estava presente na contratação e manutenção de seus empregados.
A nota afirmava que, assim como a competição tradicional de produtos e serviços enseja melhores condições de preço e qualidade, a competitividade decorrente da contratação e retenção de empregados estimula melhores condições salariais, benefícios e ofertas de emprego no mercado — direitos igualmente tutelados pela Lei de Defesa da Concorrência (LDC).
Foi, então, nesse contexto que o tema passou a despertar maior atenção do mercado para a importância de um compliance concorrencial mais abrangente, de modo que os programas tradicionalmente voltados ao combate à corrupção e à promoção de um ambiente de trabalho ético e saudável, com foco, por exemplo, em práticas de combate ao assédio moral ou sexual, também passassem a considerar outras frentes de risco, como as práticas anticompetitivas na gestão de pessoas.
Essa mudança de perspectiva demanda não apenas a revisão das políticas internas de conduta das empresas, mas também a inclusão de treinamentos específicos, a definição de regras claras sobre trocas de informações com concorrentes e a realização de auditorias periódicas capazes de identificar e corrigir vulnerabilidades jurídicas.
Um programa robusto de integridade, estruturado com base na ética corporativa, possui aptidão para mitigar riscos concorrenciais e, em certos casos, até atenuar sanções por violação à LDC.
Neste sentido, é imprescindível que as empresas invistam no amadurecimento de seus programas de compliance e na capacitação de profissionais dedicados à sua implementação e atualização contínua.
Mais do que evitar sanções, trata-se de reforçar um compromisso ético com a livre concorrência e com a sustentabilidade do ambiente de negócios — em todas as suas diversas rotinas, inclusive no que diz respeito à gestão de pessoas.
Vinicius Melo Santos é advogado do escritório Lopes Muniz Advogados.
Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.
Fonte: Valor Econômico



