Boas leis perenes valem mais que regras transitórias

A recente controvérsia em torno da ausência da cláusula de reversão patrimonial em parcerias com entidades do terceiro setor na proposta da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2026 precisa ser analisada em perspectiva. Não se trata de uma brecha para desvios, mas do reconhecimento de que a destinação de bens adquiridos com recursos públicos por organizações da sociedade civil já é disciplinada pela legislação vigente. Leis orçamentárias anuais são transitórias por definição e não devem ser sobrecarregadas com dispositivos que competem à legislação de mérito e ao planejamento de longo prazo.

A Lei nº 13.019/2014, conhecida como Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC), dispõe expressamente sobre a titularidade dos bens remanescentes ao término das parcerias. Ela exige que os instrumentos jurídicos prevejam cláusulas específicas para definir quem ficará com esses bens, considerando sempre o interesse público. O Decreto nº 8.726/2016, que regulamenta a lei em âmbito federal, determina como regra geral que os bens adquiridos com recursos da parceria permaneçam com a organização da sociedade civil, salvo justificativa expressa do poder público em sentido contrário. Essa diretriz busca assegurar que esses bens continuem a ser utilizados para as finalidades sociais e de interesse público pelas quais foram originalmente destinados na parceria.

A lógica que fundamenta essa escolha legislativa é simples: a devolução automática nem sempre é a solução mais eficiente. Há situações em que o retorno de bens à administração pública representa, na prática, a inutilização de equipamentos, o desperdício de recursos ou a imposição de encargos administrativos desnecessários. O objetivo das parcerias não é reter patrimônio, mas garantir resultados de impacto social. Por isso, o regime jurídico vigente parte da premissa de que a permanência dos bens com a Organização da Sociedade Civil (OSC) pode, muitas vezes, ser a forma mais eficaz de preservar o interesse público.

Além disso, o sistema legal já prevê salvaguardas para casos de descumprimento de obrigações. O artigo 16 do Decreto Federal nº 11.531/2023, o artigo 36 e o inciso X do caput do artigo 42 do próprio MROSC e o artigo 23 do Decreto Federal nº 8.726/2016 oferecem arcabouço jurídico sólido para coibir desvios e irregularidades. Esses dispositivos estabelecem hipóteses claras de devolução de recursos, bens e valores em caso de reprovação da prestação de contas, desvio de finalidade ou má gestão. A responsabilização dos gestores, a eventual suspensão de repasses e a reparação de danos ao erário seguem asseguradas pela legislação aplicável.

Antes da criação do MROSC, a instabilidade era a regra nas relações com o terceiro setor. A cada ano, alterações pontuais nas leis orçamentárias modificavam critérios essenciais das parcerias, como exigência de contrapartida e tempo de existência prévia. Ora se exigia contrapartida financeira obrigatória, ora se tornava facultativa, com variações conforme o tipo de organização ou a área de atuação, como saúde, assistência social, educação ou cultura. O tempo de existência prévia, por sua vez, já foi obrigatório ser de cinco anos e depois passou a ser de três anos na LDO, sendo hoje essa a regra consolidada no MROSC para parcerias com a União.

Essa volatilidade normativa impunha um custo elevado às organizações, que viam suas condições de atuação em parceria alteradas a cada exercício fiscal. O ambiente era marcado por insegurança jurídica e por uma lógica que impedia planejamento de médio e longo prazo. As parcerias ficavam à mercê de regras anuais e de mudanças muitas vezes motivadas mais por conjunturas políticas do que por evidências ou boas práticas de gestão.

O MROSC foi instituído justamente para romper com esse ciclo de improviso. Ao estabelecer diretrizes estáveis, técnicas e orientadas ao interesse público, a nova legislação deu previsibilidade às parcerias e afastou a necessidade de regramentos transitórios e casuísticos na LDO. Com isso, fortaleceu-se a institucionalidade da relação entre Estado e sociedade civil, eliminando a sobreposição normativa que antes recaía sobre a lei orçamentária.

Em um país com tantas desigualdades e demandas sociais urgentes, é essencial preservar o equilíbrio entre controle e efetividade. Exigir a destinação ao Poder Público de todo bem sem análise de contexto pode representar mais um entrave burocrático do que um avanço institucional. As OSCs são parceiras legítimas do Estado na implementação de políticas públicas e no atendimento de populações vulneráveis.

Fortalecer esse ecossistema passa também por reconhecer que garantias permanentes não precisam ser reeditadas a cada ciclo orçamentário, e que há maturidade suficiente no marco regulatório para proteger o interesse público com responsabilidade, previsibilidade e bom senso. O debate sobre boas práticas na aplicação de recursos públicos deve, sim, ser permanente, mas precisa se dar com base jurídica e institucional sólida.

Laís de Figueirêdo Lopes e Paula Raccanello Storto são sócias de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados (SBSA Advogados)
Este artigo reflete as opiniões das autoras, e não do jornal Valor Econômico.

Fonte: Valor Econômico

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